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Tem a mirada fugaz, que nos impacta e produz uma reação imediata. Tem a mirada contemplativa quando o olhar se acomoda na imagem na busca por outros elementos, gestos sutis e camadas ocultas. Os termos mirada fugaz e mirada contemplativa são empregados pelo filósofo coreado Byung-Chul Han, no livro A sociedade da transparência, com o objetivo de analisar a sociedade que busca preencher seu vazio com verdades transparentes. Han trabalha estes conceitos para falar sobre o lugar das imagens nas redes sociais, mas podemos nos apropriar deles para pensar na forma com a qual nos relacionamos com as imagens fotográficas.
Podemos, ao olhar uma fotografia, passar da mirada fugaz para a contemplativa e ir moldando nossa visão aos poucos, porém também podemos parar na reação sem conseguir aprofundar e só reagir.
No dia 19 de Janeiro, uma fotografia de Gabriela Biló, publicada na primeira página da Folha de São Paulo gerou polêmica nas redes. Muitas pessoas ficaram impactadas e presas na mirada fugaz, não se permitiram moldar o olhar na foto, não contemplaram a imagem. No fundo, eu entendo que estamos ainda muito afetados pela sucessão de acontecimentos violentos que vivemos nas últimas semanas e que os mesmos acabam se misturando à forma com a qual lemos todas as informações que recebemos. Mas acho importante apresentar outros olhares para essa primeira página do jornal e para essa fotografia.
A Primeira página de 19 de Janeiro também levantou um debate importante sobre o papel do fotojornalismo na defesa de uma verdade, do lugar da isenção, do compromisso com a realidade. E acredito que precisamos afirmar sempre que não existe foto isenta, toda fotografia é produto de um olhar. É uma realidade moldada por escolhas de enquadramentos, lentes que distorcem, aproximam, afastam, produzem desfoque, aprofundam campos. Fotografias dramatizam cenas com a alteração da temperatura das cores, os contrastes realçados nos dão nó nas tripas, o preto e branco nos leva para a crueza dos acontecimentos.
Peço desculpas aos puristas…a realidade não existe na fotografia. Tudo é narrativa.
A trucagem e a dupla exposição são técnicas legítimas de produção de narrativa visual mesmo no campo do fotojornalismo. A foto em questão não é uma montagem e fotojornalismo é arte mesmo quando a imagem não nos agrada em sua mirada fugaz. Na semana anterior, a Folha de São Paulo publicou uma foto de Gabriela Biló (na dúvida, confira seu perfil no instagram @gabrielabilo) utilizando a mesma técnica de dupla exposição. A fotografia que mostra Marina Silva sorrindo e estampada de árvores só rendeu aplausos. Ninguém questionou a técnica empregada e sua legitimidade no campo de jornalismo. A questão, no meu entendimento, é conseguir sair do lugar da reação e aprofundar o olhar, evitando as análises imediatistas tão próprias das redes sociais.
Na foto da Gabriela Biló, eu vejo uma democracia que foi golpeada, a vidraça está trincada e não quebrada. Por trás desse vidro trincado, vejo, no presidente que arruma a gravata, a representação de quem arruma a casa. Ele o faz com tranquilidade e um leve sorriso no rosto, sem se deixar levar pela tentação de reações autoritárias. Quem viu um tiro no peito do presidente não conseguiu olhar propriamente a imagem e ficou paralisado na mirada fugaz.
Mas as fotografias não figuram sozinhas nas primeiras páginas de jornal. Aliás, a Folha já há tempos transformou suas primeiras páginas em unidades interpretativas bem mais elaboradas do que um simples espaço para as principais notícias.
Vamos, então, passar para uma breve análise dessa primeira página a partir dos seus elementos mais significativos. A foto em questão está nitidamente relacionada com a manchete que diz “No foco de Lula, presença militar no planalto é recorde”. E este conjunto composto de foto e texto expressam claramente a opinião do veículo sobre o perigo que representa o poder dos militares dentro do governo. A Folha vem produzindo matérias, podcasts e publicando artigos que ressaltam a necessidade de diminuir o poder e a presença de militares no governo federal. E sim, é uma provocação, ao estilo de quarto poder, é uma forma de dizer que se Lula insistir em não mexer nos militares ele pode virar um alvo.
* Cecília Figueiredo, doutora em fotografia, é professora do Curso de Jornalismo da UFRRJ e participa do Observatório de Mídia da UFRRJ.