O que a gente não vê por aqui: a baixa representatividade nos veículos jornalísticos

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Numa época em que a representatividade nunca sai de pauta, o quadro de jornalistas no Brasil está longe de ser um espelho da sociedade. Embora 56,2% da população do país seja negra, de acordo com o Instituto de Geografia e Estatística (IBGE), a quantidade de profissionais da imprensa que se autodeclaram pretos ou pardos é quase três vezes menor se comparada com a mesma categoria de jornalistas brancos.

O levantamento foi divulgado na pesquisa “Perfil Racial da Imprensa Brasileira”, em 2021. De acordo com o estudo, o corpo da mídia no País é composto por maioria branca (77,6%), enquanto apenas 20,1% se autodeclaram negros, 2,1% amarelos e 0,2% indígenas. O cenário fica ainda mais delicado quando se fala de mulheres negras, já que mais da metade das entrevistadas disseram já terem sido vítimas de racismo e misoginia.

Ainda que existam exemplos de carreiras de sucesso nos holofotes dos estúdios de televisão, como a da inesquecível Glória Maria – considerada a primeira repórter negra – e de Maju Coutinho, o jornalismo brasileiro ainda não se constitui como espaço plural e igualitário. O cenário forma um abismo entre o conteúdo produzido pela imprensa e o público que o recebe, que segue tendo grande parcela apagada da mídia.

Para a produção deste texto, procuramos responder à seguinte pergunta: “quem faz jornalismo nos dias atuais?”. Para tal, acompanhamos a atuação dos veículos Folha de São Paulo, O Dia, Brasil de Fato, GloboNews, CNN e Jovem Pan durante o período de 18 de fevereiro a 4 de março de 2023.

Quem está nas páginas da Folha de São Paulo?

Com a promessa de ser um jornal “a serviço da democracia”, a Folha de São Paulo faz parte do maior conglomerado de mídia do País. O primeiro exemplar veio em 1921, intitulado “Folha da Noite”, a fim de informar os trabalhadores da capital paulista na volta do trabalho para casa. Hoje, o preço de cada edição bate os R$6 e o impresso já não atinge mais a mesma classe social.

Não diferente da maioria das grandes empresas, o grupo Folha é comandado, majoritariamente, por homens brancos. O presidente é o empresário Luiz Frias, a 12ª pessoa mais rica do País, segundo o ranking de bilionários da Revista Forbes de 2021. O conglomerado de mídia, que hoje diz respeito a todos os produtos e serviços oferecidos pelo Universo Online (Uol), era antes dirigido pelo pai do empresário e está “na família” Frias há 60 anos.

No Brasil, o periódico foi o pioneiro na criação do cargo de Ombusdman, pessoa responsável por analisar a qualidade informativa das edições de forma, supostamente, imparcial – o que reafirma o compromisso do jornal com a objetividade. Na editoria de opinião, é sustentado o princípio da pluralidade, com colunas como a da indígena Txai Suruí e artigos que falam de temas como o racismo estrutural, por exemplo, além de uma sessão fixa dedicada ao debate de ideias.

Entretanto, mesmo priorizando a busca pela diversidade, o periódico tem escolhas editoriais, no mínimo, controversas. Durante o período analisado, matérias sobre a deputada do Partido Liberal (PL), Carla Zambelli, acusada de porte ilegal de armas após apontar uma pistola para um homem negro às vésperas do segundo turno das eleições do ano passado, estamparam as páginas do jornal em duas edições seguidas.

Na primeira, publicada no dia 23 de fevereiro, uma página completa é destinada à entrevista em que a deputada faz críticas ao ex-presidente e antigo aliado, Jair Bolsonaro, e levanta bandeira de paz ao Supremo Tribunal Federal (STF) – órgão que sempre atacou durante a campanha eleitoral. Já na edição do dia 24 de fevereiro, mais da metade da página 6 foi ocupada pela reação de bolsonaristas às declarações feitas por Zambelli na entrevista anterior. Em ambas as matérias, fotos posadas da deputada, com tom imponente, estamparam os impressos.

Muito diferente do espaço dedicado à deputada do PL, apenas 17 linhas da edição do dia 3 de março foram reservadas para contar que a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, havia sido considerada uma das mulheres do ano pela Revista Times. A irmã de Marielle, vereadora do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) assassinada em 2018 num crime sem resolução até hoje, ganhou uma nota no canto da página 11, sem fotos, mesmo sendo a única brasileira citada na lista.

O Dia realmente é um jornal do povo?

Ao analisar o jornal O Dia, é possível observar que suas publicações têm como missão primordial “falar de perto com a população carioca”, ou seja, divulgar as mazelas e celebrações de seu público-alvo de uma forma mais próxima. Quando se trata de assuntos ligados à temática racial e à representatividade, em geral, verificou-se uma forte presença de matérias relacionadas às editorias “Polícia” e “Esporte” durante o período de análise.

Na maioria dos casos, tais assuntos foram abordados de maneira mais noticiosa e menos crítica. No entanto, nas publicações sobre o enredo dos blocos de Carnaval, foi possível observar uma maior tendência de posicionamento do veículo. 

Na matéria “Racismo? Prazer! Sou negro com muito orgulho”, publicada no dia 19 de fevereiro, o jornal utilizou uma linguagem coloquial e, logo no começo, deixou claro que o tema do preconceito racial está sendo bastante enfrentado. O restante da matéria seguiu o mesmo caráter e ainda ressaltou que qualquer comportamento racista é intolerante e de muita ignorância. Dessa forma, o leitor certamente conseguiu entender a importância do carnaval como instrumento de luta por igualdade racial. 

Contudo, nas demais matérias, o cunho noticioso prevaleceu. Esse tipo de abordagem pode ser percebida na matéria “Ex-BBB Gleici Damasceno faz desabafo após sofrer racismo em aeroporto: ‘Maldade’”, em que o jornalista se preocupou em passar a informação do fato e não trouxe uma conotação opinativa.

Via de regra, as matérias do O Dia são baseadas em fatos e as interferências da opinião do redator são mínimas, o que reforça o compromisso do jornal de passar a informação para a população carioca.

Brasil de Fato: uma nova alternativa 

Fundado em 25 de janeiro de 2003, o jornal Brasil de Fato é um site de notícias brasileiro que cobre uma variedade de tópicos, incluindo política, cultura, meio ambiente e direitos humanos. O conteúdo publicado parece ser bem pesquisado e escrito, com análises e reportagens aprofundadas, que vão além do nível superficial das notícias. A página on-line também publica opiniões e editoriais de vários colaboradores, que fornecem contexto e perspectivas adicionais.

Com relação à linha editorial, o site apresenta um viés do que hoje, no Brasil, se convenciona denominar “esquerda”, facilmente observado na seleção e no tom de seus artigos. Embora tenha uma perspectiva ideológica, o jornal é transparente sobre seus valores. Por isso, suas reportagens são geralmente objetivas e baseadas em fatos, mostrando uma diversidade de visões sobre os assuntos que cobre.

A temática racial e de diversidade foi abordada de forma coerente e prioritária em relação  à fala daqueles que sofrem diretamente com esses problemas. Nesse cenário, uma das matérias mais significativas foi a do jornalista Felipe Medeiros, que denunciou o aumento do comércio do ouro Yanomami no governo Bolsonaro. A reportagem, publicada no último dia 21 de fevereiro, destaca: “O comércio do ouro extraído ilegalmente da Terra Indígena Yanomami (TIY) ocorre de forma escancarada em Roraima. Em Boa Vista, é visível a expansão de empresas que vendem os chamados “carotes”. Os objetos são utilizados para transporte de combustíveis, oficinas de embarcações, manutenção e venda de motores de barcos, distribuidoras de bebidas e alimentos, lojas de materiais de construção com itens usados no garimpo expostos nas calçadas, além das joalherias e ourivesarias.”

No geral, o Brasil de Fato é um site de notícias confiável que fornece reportagens detalhadas sobre uma série de questões importantes no País. Seus textos são bem claros e oferecem aos leitores oportunidade de engajamento e envolvimento da comunidade.

GloboNews: O Jornal das Dez e o aprofundamento de temas centrais

O Jornal das Dez é o principal telejornal do canal de televisão por assinatura GloboNews. Transmitido diariamente a partir das 22h, o noticiário expõe os assuntos mais relevantes do Brasil e do mundo durante duas horas, de segunda a sexta, e apenas uma hora, aos sábados e domingos. 

Em geral, o programa dedica-se a apresentar enredos que envolvem o maior grupo de pessoas possível, ao contrário daqueles jornais que apenas comunicam situações isoladas. Os temas retratados são intrínsecos à qualidade de vida da sociedade num todo. Política, clima, economia, conflitos internacionais e cultura são os assuntos mais explorados.  

O formato do telejornal se baseia em, diariamente, levantar discussões sobre uma temática central que será examinada ao longo de toda a sua exibição, a partir de entrevistas, debates, falas de correspondentes e comentaristas que analisam e apresentam possíveis soluções. De acordo com a gravidade do tópico em questão, a problemática pode se estender por vários dias para acompanhar, ao mesmo tempo que apura, a resolução do evento.

A título de exemplo, em fevereiro deste ano, nos dias que se sucederam à tragédia causada pelas chuvas que atingiram municípios do litoral norte de São Paulo, o noticiário se dedicou a averiguar as consequências causadas pelo temporal por meio do formato de jornalismo investigativo em tempo real, que observou os fatos antes, durante e depois do episódio, enquanto o programa estava no ar. Testemunhas oculares, líderes políticos da região, especialistas em clima, entre outras figuras pertinentes, fizeram declarações ao vivo, em diálogo com o apresentador, a fim de desnudar o tema. O informativo funciona, assim,  como uma ferramenta aberta de investigação jornalística. 

Através da análise para a produção desse texto, foi possível perceber que, na busca pela diversidade, o grupo se compromete a abrir espaço para debater pontos que afetam partes consideráveis da população como a violência contra mulher, racismo, desmatamento, conflitos internacionais, etc.

Do factual às análises: CNN é apartidária?

A CNN é um canal internacional fundado em 1980, nos Estados Unidos, pelo bilionário Ted Turner, e fornece a cobertura de notícias 24 horas, contando com diversos programas e plataformas para funcionar. Com o objetivo inicial de cobrir apenas os EUA, hoje o veículo está presente no Brasil e em diversos países do mundo. 

Embora proclamada uma rede apartidária, a cobertura realizada pela CNN Brasil já foi alvo de críticas – difíceis de encontrar devido à influência do jornal nos principais portais de pesquisas da internet – direcionadas, principalmente, ao âmbito político. O canal declarou que a polarização nunca foi uma opção, discurso contraditório, uma vez que, após um número alto de demissões em 2022, foram realizadas contratações pontuais de críticos do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro – os jornalistas Marco Antonio Villa e Joel Pinheiro.

Apesar de ser um jornal com programas voltados principalmente para notícias internacionais, políticas e econômicas, com destaque das hard news, o factual, por muitas vezes, dá voz a especialistas que fazem análises profundas sobre determinados assuntos. A sede nacional da rede conta com um corpo de jornalistas formado por colunistas, analistas, repórteres e apresentadores altamente qualificados – muitos, inclusive, premiados. Todas as análises feitas nos programas ao vivo são baseadas em fatos e, apesar de tentar mostrar certa imparcialidade, o viés da empresa fica claro quando aborda assuntos políticos, com tendência mais à esquerda.

O incômodo ao assistir o canal não está vinculado à qualidade da informação passada ao espectador ou ao “lado” político que está sendo privilegiado, mas sim, à falta de representatividade nas suas transmissões. Durante o período de análise, foi possível identificar apenas uma repórter, uma apresentadora, um analista político e uma colunista preta, que não estavam presentes quando foi abordado o racismo sofrido por um homem em um posto de combustível do Aruã, em Mogi, ou quando a pauta foi a ex-BBB Gleice Damasceno fazendo um alarde sobre as falas racistas de uma funcionária do Aeroporto Internacional de Guarulhos, por exemplo.

É desgastante perceber que, apesar de pregar uma política empresarial de igualdade de gênero e raça, os maiores veículos brasileiros tendem a manter um quadro majoritariamente masculino e de baixa representatividade, e a CNN não é exceção. Os números que reafirmam essa análise são, por exemplo, os do quadro de colunistas. São 14 no total, no qual 8 são homens e 6 mulheres e, dentre todos eles, apenas uma mulher preta, a jornalista Basílica Rodrigues.

A colunista e analista política da CNN Brasil já ganhou prêmios como o Troféu Mulher Imprensa nos anos 2018 e 2020. Apesar de falas extremamente coerentes, sempre fundamentadas, sua aparição nos programas analisados não é recorrente e se baseia apenas em opiniões e estudos políticos.

A contratação do apresentador William Waack que, mesmo com toda sua experiência e carreira foi afastado da Rede Globo após fala racista no Jornal da Globo, é o retrato da contradição do veículo. O jornalismo que é feito com seriedade, buscando dar voz e lugar às minorias, e se posicionando contra atitudes racistas e misóginas, não pode fechar os olhos para tal acontecimento. A postura do canal ajuda a legitimar esse tipo de atitude. 

O objetivo principal do veículo é abordar notícias voltadas à política e à economia com mais fervor do que outros assuntos em alta em determinado dia, mas algumas pautas devem ser discutidas e debatidas, com mais cuidado e profundidade, por aqueles que realmente têm  propriedade no assunto. A presença dessas pessoas é fundamental para que não seja mais necessário discutir, ou criticar, a falta de inclusão e representatividade nos grandes veículos. 

A cara velha da Jovem Pan

O grupo Jovem Pan é um dos mais antigos e tradicionais do País, sobretudo no campo do rádio. Fundado em 1942, o veículo era apenas a “Rádio Panamericana” até 1965, quando se tornou a Jovem Pan e já tinha concessões no campo da televisão por meio da também tradicional TV Record, mas ainda sem ter um canal que carregasse seu nome. Foi apenas em 2007 que a rede se consagrou para além da rádio com a abertura da Jovem Pan Online.

Foi com o seu canal on-line que o grupo teve a primeira experiência de transmissão mais próxima do que é um canal de televisão. A tradicional programação da rádio foi levada para a Internet, o que permitiu aos espectadores experimentarem essa nova possibilidade. Em 2020, lançaram o Panflix, um produto que nasce da aposta nas novas plataformas de streaming e que, além de transmitir os programas já conhecidos, promete entregar conteúdos exclusivos para os assinantes

Em 2021, a rede finalmente chega à televisão. Com o lançamento do canal  por assinatura Jovem Pan News, o compromisso se tornou entregar hard news, os programas tradicionais e entretenimento transmitidos 24h. A JP News também está presente no YouTube e já acumula mais de sete milhões de inscritos.

A questão é que a Jovem Pan chega à TV em um dos momentos mais conflituosos do cenário político brasileiro e com inúmeros desafios para os jornalistas. Frente a isso, o canal se consagrou como o porta-voz das ideias da direita e da extrema-direita brasileira. Por meio dele, os mais diversos políticos e simpatizantes dessa orientação ideológica ganharam tempo e espaço para debaterem e expor suas críticas.

O rigor e a ética jornalística também são um problema no que diz respeito a esse veículo da mídia brasileira. Por diversas vezes, o canal deu espaço para fake news ou conduziu debates delicados e caros para a sociedade de maneira irresponsável e pouco aprofundada. Sem contar com a postura dos profissionais da rede que, em inúmeras situações, não prezam pelo decoro com seus colegas e com o público.

Tendo em vista o método de operação do canal, podemos imaginar que pautas como representatividade e diversidade não são prioridade. E, quando aparecem na programação, são tratadas como identitárias ou de desinteresse da sociedade. Se nas discussões não encontramos pluralidade, quiçá na equipe de profissionais que estão em frente às câmeras.

Nos principais jornais diários, a repórter Iasmim Costa, correspondente em Brasília, figura a única pessoa preta nas transmissões. Na maioria dos programas,  a jornalista estava presente em mais de uma edição, mas sempre sendo presença negra exclusiva. O resto do corpo de jornalistas e comentaristas é formado, com notável maioria, por homens brancos das mais variadas idades e poucas mulheres.

Os programas de entretenimento não ficam para trás na escassez de diversidade. Mesmo que contem com sub-celebridades da Internet ou personalidades que já tiveram dias mais áureos na mídia nacional, pessoas negras ou indígenas não fazem parte do elenco fixo de apresentadores e comentaristas desse ramo na programação. 

 

Ao fim da análise de veículos tão distintos, é possível entender que, mesmo com as recentes movimentações para diversificar o quadro de jornalistas em alguns canais de comunicação, o caminho ainda é longo para atingir um cenário realmente igualitário. Além disso, as escolhas editoriais dizem respeito diretamente ao perfil que está por trás do roteiro apresentado ao público. Logo, se um corpo de maioria branca pensa o jornal, temas que dizem respeito à diversidade serão tratados de forma tímida e distanciada.

 

Por Bruno Felix, Camille Faria, Letícia Tagliamento, Roberta Duarte, Victória da Silva e Yasmin Daflon, sob orientação da professora Ivana Barreto.

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