Quando a mídia elege o espetáculo milionário e esquece a tragédia

Imagine se o naufrágio do Titanic, em 1912, não fosse manchete nos grandes jornais do mundo da época. Ou se o filme de James Cameron, estrelado por artistas como Leonardo DiCaprio e Kate Winslet, simplesmente não existisse. Ou, ainda, se a música tema da produção cinematográfica, de Celine Dion, não nos fizesse lembrar da famosa cena romântica de Jack e Rose com os braços ao vento na proa do navio. Se a maior embarcação já construída não fosse repercutida, hoje, provavelmente, não nos recordaríamos da tragédia.

Pois bem, um submarino de nome Titan desapareceu, no último dia 19 de junho, com cinco bilionários a bordo, durante uma expedição turística aos destroços do próprio Titanic promovida pela empresa OceanGate. Menos de uma semana antes, no dia 14, um navio naufragou, próximo à Grécia, com aproximadamente 700 imigrantes a bordo – entre paquistaneses, egípcios e sírios. No período que sucedeu os episódios, a grande mídia escolheu qual dos casos tornar espetáculo e, da mesma forma, qual deles resumir ao esquecimento.

Enquanto centenas de pessoas estavam desaparecidas no Mar Mediterrâneo, o dilema de cinco homens ricos que viajavam a turismo até o Titanic estampou os jornais do mundo inteiro. Aqui, analisamos os três grandes veículos de mídia brasileiros: O Globo, Estadão e Folha de São Paulo. Por meio das palavras-chave “submarino titan” e “naufrágio grécia”, buscamos o material publicado no site de cada um dos periódicos.

Não chega a ser surpresa constatar que o jornal O Globo havia publicado, até o último dia 3 de setembro, 160 matérias sobre o submarino e apenas nove relativas ao naufrágio do Mar Mediterrâneo. O que assusta é a diferença entre o número de publicações relativas a cada episódio. Para completar,  enquanto a vida dos bilionários desaparecidos era contada como uma novela, pessoas precisavam ir às ruas da Grécia protestar para cobrar respostas sobre o citado naufrágio.

Além disso, outro ponto analisado foi a permanência de ambos os assuntos na mídia. O jornal Estadão, por exemplo, publicou 40 matérias sobre o caso do submarino Titan, do dia 19 de junho ao dia 28 de agosto. Enquanto isso, o naufrágio na Grécia rendeu apenas quatro matérias, a primeira no dia 14 de junho e a última no dia 26 de junho. O fato também pôde ser observado no site da Folha de São Paulo: 49 matérias foram publicadas em aproximadamente um mês e meio, ao passo que apenas 7 resultados sobre o naufrágio na Grécia foram encontrados na busca.

A discrepância entre a quantidade de matérias publicadas e o tempo em que foram cobertas chama atenção, mais uma vez, para o comportamento social diante dos dois casos. A repercussão e o volume de comentários sobre o desaparecimento do submarino, dentro e fora da mídia, evidenciou um ciclo: quanto mais a mídia enfatiza um assunto, mais inflama o debate sobre o tema; quanto mais as pessoas repercutem, mais notícias são geradas. O mesmo ocorreu com o naufrágio, mas no sentido inverso. A discussão da época se concentrava em conseguir respostas para o sumiço do submersível. Mas, cinco dias antes, outra tragédia aconteceu, matou cerca de 60 vezes mais pessoas e não recebeu tamanha atenção.

A última matéria do Estadão relativa ao naufrágio de refugiados na Grécia, publicada no dia 26 de junho, foi uma indagação sobre essa questão. Em “Qual vida vale mais: a de um bilionário ou a de um refugiado?”, o jornalista Paulo Silvestre explica que o problema atinge não apenas a imprensa, mas também o público, ao decidir o que é “impactante” o suficiente ou não. Ele cita as redes sociais como exemplo disso, pois houve uma grande quantidade de comentários sobre o submarino e pouquíssimos sobre os refugiados. Contudo, apesar do leitor poder, sim, pautar o veículo, a mídia tem papel fundamental na criação de novos debates.

Matérias como a de Paulo Silvestre estiveram presentes nos blogs e colunas de opinião nos três veículos analisados. Mas, em meio às quase 250 matérias sobre o submarino Titan, acabam se perdendo. Nos jornais, as publicações sobre a expedição dos bilionários ocuparam as editorias mundo, turismo, cultura e até saúde. Parecia interessante contar sobre os objetos que os passageiros levavam na viagem – incluindo um cubo mágico para uma possível quebra de recorde -, o parentesco da esposa do piloto com um casal que estava no Titanic, a explicação minuciosa da engenharia do submersível, as viagens anteriores realizadas pela OceanGate ou os efeitos da implosão no cérebro humano.

O resultado da grande repercussão pôde ser observado, por exemplo, no aumento de reproduções da música “My Heart Will Go”, de Celine Dion. A trilha sonora tema do filme Titanic foi tocada mais de 500 mil vezes no Spotify nos quatro dias que sucederam o desaparecimento do submarino Titan, de acordo com uma matéria publicada pela Revista Glamour, da Globo, em 23 de junho. Já Titanic liderou o ranking de filmes mais assistidos da plataforma de streaming Star+ depois da tragédia.

Sobre o naufrágio do Mediterrâneo, se sabe que foram “ao menos 300 mortos”, que estavam no navio “estimadas 100 crianças” ou que nove dos passageiros foram presos acusados de tráfico humano – versão negada por outras duas pessoas que estavam no navio, de acordo com a BBC. Outros sobreviventes disseram que a própria guarda costeira  grega causou o acidente na tentativa de rebocar o navio com uma corda. Sem números precisos nem possíveis obras cinematográficas, os mais de 700 rostos anônimos amontoados na embarcação permanecem naufragados na memória social do Oceano Pacífico ao Índico.

Por Camille Faria e Yasmin Daflon, sob orientação da professora Ivana Barreto.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *