Quando a mídia escolhe um lado: a cobertura do Jornal Nacional sobre o conflito entre Israel e Palestina

O Jornal Nacional é um dos principais veículos de informação do País. De acordo com o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), o noticiário é o mais influente e assistido da Rede Globo, com audiência de, pelo menos, 40% dos brasileiros. Tal sucesso coloca o programa numa posição privilegiada quando o assunto é formação de opinião pública. Neste trabalho, vamos analisar a cobertura do JN sobre os episódios recentes do conflito entre Israel e Palestina. A abordagem reproduzida no telejornal gerou debate tanto nas redes sociais quanto em outros portais de mídia.

O choque entre Israel e Palestina ocorre desde a primeira metade do século XX. O embate é um dos mais longos da história e envolve questões religiosas, políticas e de controle da região. A partir da criação do Estado de Israel, em 1948, o povo palestino testemunha a colonização de seu próprio território sob um regime de Apartheid, ou seja, de segregação. O que os israelenses consideram a sua declaração de independência, os palestinos chamam de “Nakba” – de árabe para português, “a catástrofe”. A Agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para Assistência aos Refugiados Palestinos (Unrwa) aponta que 6 milhões de pessoas dependem dos serviços da entidade na Faixa de Gaza e na Cisjordânia – ambas regiões árabes ocupadas por Israel -, assim como no Líbano, na Síria e na Jordânia.

Os Estados Unidos foi a primeira nação a reconhecer o Estado judaico e, desde então, o gigante fornece apoio militar ao exército israelense. Enquanto o País dispõe de tecnologia de ponta, com caças supersônicos e sistema de defesa antimíssil, o Hamas, grupo armado de resistência que luta pela autonomia palestina, afirma que grande parte do arsenal usado na ofensiva foi produzido de forma artesanal. Hoje, estima-se que Israel possui 90 bombas nucleares.

Mesmo em clara situação de desvantagem, em 7 de outubro, o Hamas disparou milhares de foguetes contra Israel, enquanto combatentes atravessavam a divisa entre as duas regiões. Centenas de pessoas foram capturadas ou mortas. O episódio foi descrito como o mais sério ataque fronteiriço na região nos últimos tempos. O país judeu respondeu à ofensiva com ataques em massa contra a Faixa de Gaza, território controlado pelo grupo Hamas desde 2007.

Gaza é reconhecida pelos próprios palestinos como “a maior prisão ao ar livre do mundo”. Entre Israel, Egito e Mar Mediterrâneo, num território de apenas 365km², se amontoam cerca de 2,3 milhões de pessoas – uma das maiores densidades populacionais do mundo, com 9 mil habitantes por quilômetro quadrado. Após a chegada do Hamas no poder, vitória conquistada por meio de eleições, Israel e Egito impuseram um bloqueio terrestre, aéreo e marítimo sobre a região. A medida impede que os residentes saiam do local, além de limitar o acesso das famílias a alimentos, água e energia elétrica. De acordo com a ONU, mais de 65% da população do local vive abaixo da linha da pobreza.

Desde o momento em que as notícias começaram a ser veiculadas, no dia do primeiro ataque do Hamas, até o mês seguinte, no dia 7 de novembro, o JN exibiu quase 8 horas de reportagens sobre o conflito, em 27 edições. Os dados foram publicados numa análise do Opera Mundi, site do grupo UOL. O ponto-chave, e o que provocou a discussão, foi a desproporção em que ambos os lados foram apresentados, a escolha de palavras, os minutos cedidos e como os fatos foram noticiados.

Apenas nesse primeiro mês, foram cerca de 1.400 israelenses mortos pelo Hamas, na chamada “Operação Tempestade de al-Aqsa”. Nesse mesmo período, mais de 10 mil palestinos foram mortos pelo exército de Israel em ataques diários. As reportagens realizadas pelo Jornal Nacional, ainda assim, foram majoritariamente voltadas aos ataques da resistência palestina, mesmo que o grupo tenha matado sete vezes menos que Israel. O noticiário dedicou 27% do tempo de programa aos atentados do Hamas, mais que o dobro do reservado às violações atribuídas ao lado israelense (13%). Os dados também são do Opera Mundi.

O Hamas é considerado uma organização terrorista por Israel, pelos Estados Unidos, pela União Europeia, pelo Reino Unido e, também, pela Rede Globo. Por mais que o governo brasileiro e a própria ONU não reconheçam a associação como criminosa, em diversas edições do Jornal Nacional, o grupo é referenciado como criminoso. Enquanto a palavra “terrorista” é repetida de forma insistente, o termo “apartheid” não tem espaço no noticiário. A posição endossa o controle israelense sobre a região, já que a justificativa do governo judeu para o cerco é, justamente, a proteção do País contra o terrorismo. 

Em uma reportagem divulgada no dia 23 de outubro no telejornal, com o título “Forças israelenses voltaram a bombardear posições do Hamas em Gaza” – importante ressaltar que, já pela chamada, é possível identificar que se trata de uma matéria sobre um dos ataque de Israel -, depois de noticiar o fato novo, são expostos o enterro de famílias mortas pelo lado palestino no ataque do dia 7, além de depoimentos de brasileiros que fugiram do Hamas. O grupo é chamado de terrorista cinco vezes durante a transmissão, que dura pouco mais de cinco minutos.

Na mesma reportagem, foram escutados o chefe do Comando Militar israelense, um habitante de Gaza, o Ministro da Defesa de Israel e o líder da oposição do governo vigente no País. Em outra matéria, no ar em 10 de novembro com o nome “Autoridades palestinas e governo de Israel trocam acusações sobre ataques a hospitais no norte da Faixa de Gaza” – que, em tese, trataria do conflito sob visão de ambos os países – aparece, mais uma vez, o chefe do Comando Militar de Israel, num pronunciamento de mais de 45 segundos, e a única fala que representa o lado palestino: o depoimento do alto comissário da ONU, que condenou os ataques israelenses a civis, foi repetido pelo repórter por pouco mais de 10 segundos. Na mesma produção, ainda são reproduzidos os discursos do secretário de Estado norte-americano e de um cidadão israelense vítima do Hamas. 

Além das questões já citadas, o Jornal Nacional  também ocultou acusações da ONU e de outros órgãos a Israel. O fato do exército israelense matar cerca de 100 crianças por dia, a falta de acesso à ajuda médica emergencial à população de Gaza e a quantidade de crianças mortas no local já ter superado o número de menores assassinados em conflito de qualquer ano, segundo a Save The Children, são alguns desses dados que geram a dúvida: por que foram omitidos?

Em uma das poucas matérias em que aborda a complexa questão contextual da área, o jornal cita, brevemente, o embargo na Faixa de Gaza. Entretanto, culpa o grupo Hamas pela falta de suprimentos e a consequente situação de miséria da população. Na reportagem do dia 7 de outubro, intitulada “Hamas controla território onde vivem mais de 2 milhões de pessoas”, a palavra “antissemita” é usada para definir as primeiras composições do grupo, mesmo sendo Israel o invasor de um território que já era palestino antes da criação do país judeu.

Junto a isso, é válido observar que os conteúdos das reportagens sobre os ataques do Hamas foram espetacularizados, com apelo ao número de crianças, mulheres e idosos. Enquanto isso, as investidas de Israel não são mostradas com a mesma emotividade, apesar de representarem cerca de 70% das 10 mil mortes palestinas. 

Aliás, ainda houve ataques de Israel a civis não noticiados pelo JN, o que demonstra, mais uma vez, a desigualdade de espaço cedido para ambos os lados no telejornal. Dentre eles, estão o massacre de pelo menos 700 palestinos em 24 horas, no dia 29 de outubro; o bombardeio ao hospital al-Nasr, no dia 31; o massacre que deixou cerca de 63 mortos na escola Osama bin Zaid, no dia 30. Outros bombardeios a uma universidade e a um comboio de caminhões, além da destruição de 54 mesquitas, também estão entre as notícias veiculadas pelo Jornal Nacional. Todos foram cometidos pelas tropas israelenses. 

Se o fazer jornalístico de qualidade pretende ouvir os dois lados da história, é perigoso constatar que o principal noticiário do País escolheu apenas uma vertente para reproduzir. Ressoar a narrativa hegemônica significa inocentar Israel e, mais que isso, invalidar a resistência palestina e desumanizar o povo árabe. Posicionar o Hamas como único culpado, nesse caso, é voltar para o século XV, quando a rebelião dos colonizados era sufocada e condenada. Na contemporaneidade, só mudaram os termos: o que antes era barbárie, agora é terrorismo.

Por Camille Faria e Yasmin Daflon, sob orientação da professora Ivana Barreto.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *